segunda-feira, maio 31, 2010

Um sonho num sonho

Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confessar-te
que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
ente real ou visão fugidia?
De maneira qualquer fugiria.
O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.

Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma praia, que a vaga tortura.
Minha mão grãos de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas, fogem-me, pelos
dedos, para a profunda água escura.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?


Edgar Allan Poe

quinta-feira, maio 06, 2010

O velório

Nem todos, chorarão minha ida
Nem os chacais, nem os corvos
Minh’alma desvairada
Perambula, vagando os portos

A luz é um pequeno ponto
Enquanto as trevas são o todo à sua volta
Os cães uivam ao badalar estridente
Enquanto choram os que ficam e olham

A mãe me disse que ele está ali, dormindo
Está apenas a descansar

Retirar-me-ei então, daqui sorrindo

Está tarde e quero também me deitar


A vó brigou por terem me trazido aqui
Disse que não deveria ver nem compreender
Que noite esquisita e que fim notório
Velas, lágrimas e um caixão
Esta foi a vez, em que pequeno, fui a um velório


Ederson R. Zanchetta – 23 de abril de 2010

segunda-feira, maio 03, 2010

Antítese


O seu prêmio? — O desprezo e uma carta de alforria
quando tens gastas as forças e não pode mais ganhar
a subsistência. (Maciel Pinheiro)


Cintila a festa nas salas!
Das serpentinas de prata
Jorram luzes em cascata
Sobre sedas e rubins.
Soa a orquestra ... Como silfos
Na valsa os pares perpassam,
Sobre as flores, que se enlaçam
Dos tapetes nos coxins.

Entanto a névoa da noite
No átrio, na vasta rua,
Como um sudário flutua
Nos ombros da solidão.
E as ventanias errantes,
Pelos ermos perpassando,
Vão se ocultar soluçando
Nos antros da escuridão.

Tudo é deserto. . . somente
À praça em meio se agita
Dúbia forma que palpita,
Se estorce em rouco estertor.
— Espécie de cão sem dono
Desprezado na agonia,
Larva da noite sombria,
Mescla de trevas e horror.


É ele o escravo maldito,
O velho desamparado,
Bem como o cedro lascado,
Bem como o cedro no chão.
Tem por leito de agonias
As lájeas do pavimento,
E como único lamento
Passa rugindo o tufão.

Chorai, orvalhos da noite,
Soluçai, ventos errantes.
Astros da noite brilhantes
Sede os círios do infeliz!
Que o cadáver insepulto,
Nas praças abandonado,
É um verbo de luz, um brado
Que a liberdade prediz.

(Castro Alves 1847-1871)